Dra. Analúcia Terra Peixoto – OAB/RS 69.242
Especialista em Direito Médico
Professora e Advogada
Assessora Jurídica da ABME – Associação Brasileira de Medicina Estética
Dra. Paula Capra Valentini – OAB/RS 68.638
Pós-graduanda em Direito da Saúde pela PUC-RJ
Especialista em Direito Civil e Processo Civil
Advogada com atuação em direito médico e da saúde
Escritório Terra & Capra – Defesa Médica
@terraecapra
Resumo: O objetivo do presente artigo é o de desmistificar a ideia de que o médico estará sempre obrigado a iniciar ou a continuar o tratamento do paciente que o procurou. Em determinadas circunstâncias, em especial nos atendimentos eletivos, o início ou a continuidade do tratamento prejudicará a própria estabilidade da relação médico-paciente e poderá gerar importantes reflexos em questões jurídicas.
Sumário: 1. Considerações iniciais. 2. As peculiaridades da relação médico-paciente no âmbito da medicina estética. 3. O direito de recusa de atendimento ao paciente. 4. Considerações finais. 5. Referências bibliográficas.
1. Considerações iniciais
O juramento de Hipócrates[1], firmado por todos os médicos na solene cerimônia de término de sua formação acadêmica, traduz o compromisso ético do profissional no sentido de exercer sua profissão com retidão, em verdadeiro cumprimento do princípio bioético da beneficência.
A relação médico-paciente, entretanto, já não é mais a mesma. O paciente não é mais um sujeito totalmente passivo dessa relação. Hoje ele exige não só receber todo tipo de informação, como também passou a pretender uma autonomia bem maior, a ponto de que passe a ser deixado no campo de sua própria decisão individual o que antes dela era excluído.
O médico, por outro lado, em especial nos atendimentos eletivos, realizados no âmbito de suas clínicas ou consultórios particulares, também tem autonomia para exercer a sua profissão, devendo ponderar as razões que ocasionalmente podem levá-lo a renunciar o tratamento de determinado paciente.
2. As peculiaridades da relação médico-paciente no âmbito da medicina estética.
Embora a relação médico-paciente não seja a mesma de outros tempos, exigindo constantes releituras, os princípios elementares que serviram de base para a formação dessa relação seguem os mesmos.
Pela ideia de reciprocidade, a relação médico-paciente deve se sustentar numa troca constante, circunstância que acaba por exigir, entre os envolvidos, um sentimento recíproco de transparência, cabendo ao médico fazer com que o paciente se sinta acolhido a ponto de confiar-lhe a sua saúde e sua intimidade.
Disso resulta que a confiança estabelecida nessa relação é um aspecto essencial. A quebra da confiança talvez seja a principal causa de demandas judiciais contra médicos. O profissional precisa estar preparado para transmitir confiança ao seu paciente, o qual, por sua vez, precisa confiar ao médico tudo que for importante para o sucesso de seu tratamento.
Já pelo princípio da autoridade, o médico precisa demonstrar ao paciente que tem conhecimento a respeito do problema que lhe foi apresentado. Ainda que não tenha todas as respostas ou a solução exata – algo perfeitamente natural – o profissional precisa estar disposto a tentar resolver a demanda do paciente mediante a utilização de todos os seus conhecimentos. O paciente precisar estar seguro em relação à escolha do profissional pelas suas habilidades técnicas e intelectuais.
Além disso, tanto o médico como o paciente precisam agir com ética na relação firmada, não podendo o médico se utilizar do momento de fragilidade de seu paciente para de alguma forma se beneficiar ou obter qualquer vantagem indevida.
É preciso levar em consideração, contudo, que o paciente que procura o médico por questões estéticas é um paciente potencialmente fragilizado com a sua aparência. Ao mesmo tempo em que ele pode ficar extremamente satisfeito com as intervenções realizadas, ele pode sentir-se profundamente frustrado por não ter alcançado o objetivo almejado, objetivo este que, sabemos, muitas vezes é inatingível.
O perfil dos indivíduos que procuram tratamentos estéticos reiterados é o de pessoas com baixos níveis de autoestima e constante insatisfação com a sua imagem, o que gera uma elevada atitude defensiva e uma maior sensibilidade afetiva.
Os motivos que levam à realização de tratamentos estéticos são justificados por diversas razões, como a busca pela melhora de imagem, necessidade de aumento de autoestima, não raras vezes incluindo pacientes com sintomas de Transtorno Dismórfico Corporal.
Há quem diga que a busca por tratamentos estéticos nada mais é do que uma forma de atingir o padrão estético estabelecido culturalmente, ou seja, a maneira de se obter prestígio, admiração e status social em uma sociedade.
E é justamente com esse padrão de paciente que é o médico precisa redobrar os seus cuidados e, de fato, avaliar se vale a pena o atendimento, pois na grande maioria dos casos, quando o atendimento se dá apenas para atender os anseios do paciente, as chances de problemas futuros aumentam exponencialmente.
Outra importante situação é aquela que decorre de atendimento de paciente insatisfeito com procedimento anterior realizado por profissional não médico. Nessas hipóteses, se entender o médico pelo atendimento, é imprescindível a elaboração de documentação específica, para que depois permaneça a possibilidade de individualização da conduta de cada profissional.
3. O direito de recusa de atendimento ao paciente.
O Código de Ética Médica, em seu Capítulo I, que trata dos princípios fundamentais, mais precisamente em seu inciso VII, assim dispõe[2]:
VII – O médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente.
Nas palavras de Marcos Coltri e Eduardo Dantas[3], nos comentários ao Código de Ética Médica, o que o princípio busca resguardar é o direito à objeção de consciência. Aliás, a objeção de consciência é estabelecida como direito, também neste código, em seu Capítulo II, inciso IX, quando garante ao médico a prerrogativa de recusar-se a realizar atos médicos que, embora permitidos por lei, sejam contrários aos ditames de sua consciência. Além disso, hoje é também regulamentada pela Resolução CFM nº 2.232/2019, que em seu artigo 8º define a objeção de consciência como sendo o direito do médico de se abster do atendimento diante da recusa terapêutica do paciente, não realizando atos médicos que, embora permitidos por lei, sejam contrários aos ditames de sua consciência.
Outro importante artigo também previsto no Código de Ética Médica está no Capítulo V, que trata sobre a relação com pacientes e familiares, e assim dispõe no §1º do artigo 36:
§1º - Ocorrendo fatos que, a seu critério, prejudiquem o bom relacionamento com o paciente ou o pleno desempenho profissional, o médico tem o direito de renunciar o atendimento, desde que comunique previamente ao paciente ou a seu representante legal, assegurando-se da continuidade dos cuidados e fornecendo todas as informações necessárias ao médico que lhe suceder.
Verifica-se, assim, que apenas se pode falar em obrigatoriedade de atendimento nas condições de urgência ou de emergência, onde, de fato, eventual inércia possa caracterizar a omissão de socorro. Nos demais atendimentos, tidos como eletivos, que é o que ocorre nos casos de tratamentos estéticos, sempre prevalecerá a autonomia do médico, que tem a faculdade de atender ou não o paciente.
E aqui falamos não apenas no atendimento inicial, mas na continuidade da relação, pois é normal, embora não desejável, que ocorram discordâncias e atritos entre médico e paciente. Ou, ainda, que o médico perceba que está diante de um caso em que o paciente, ainda que empregados todos os esforços nos tratamentos, continuará sempre insatisfeito, pois os seus problemas, em realidade, ultrapassam o campo da estética.
4. Considerações finais.
Uma vez identificada a autonomia do médico em atender ou continuar o tratamento com determinado paciente, é preciso que ele identifique, também, que a continuidade de atendimento de um paciente com exageradas e insanáveis queixas provavelmente acabará, diante de qualquer ruído de comunicação, gerando uma demanda judicial.
O médico não é um escravo das vontades do paciente, podendo recusar-se a realizar procedimentos que entenda desnecessários, receitar medicamentos que saiba inapropriados para o caso, ou mesmo não atender um determinado paciente por motivos de foro íntimo, por razões pessoais que só a ele compete[4].
Não se pode esquecer, contudo, que a comunicação deve ser polida e clara, com o registro de tudo em prontuário médico, não só como forma de defesa, em eventual ação judicial, mas como forma de assistência ao paciente, caso ele resolva dar início ou continuidade ao tratamento com outro profissional, já que o prontuário pertence ao paciente.
5. Referências bibliográficas.
COLTRI, Marcos Vinícius Coltri; DANTAS, Eduardo Vasconcelos dos Santos. Comentários ao Código de Ética Médica – 3. Ed. Ver. Atual. e ampl. – Salvador: Editora Juspodivm, 2020.
FRANÇA, Genival Veloso de. Direito médico. 16ª Ed. Rio de Janeiro. Forense, 2020.
Resolução CFM 2.217/2018. Disponível em <https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/BR/2018/2217>. Acesso em 04 de setembro de 2021.
[1] Disponível em <http://www.cremesp.org.br/?siteAcao=Historia&esc=3>. Acesso em 04 de setembro de 2021.
[2] Disponível em <https://cem.cfm.org.br/>. Acesso em 04 de setembro de 2021.
[3] COLTRI, Marcos Vinícius Coltri; DANTAS, Eduardo Vasconcelos dos Santos. Comentários ao Código de Ética Médica – 3. Ed. Ver. Atual. e ampl. – Salvador: Editora Juspodivm, 2020. p. 52.
[4]COLTRI, Marcos Vinícius Coltri; DANTAS, Eduardo Vasconcelos dos Santos. Comentários ao Código de Ética Médica – 3. Ed. Ver. Atual. e ampl. – Salvador: Editora Juspodivm, 2020. p. 53.
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